É engraçado a força que as coisas parecem ter
Quando elas precisam acontecer
Uma
mesa de bar, um homem sentado, uma folha velha de caderno em suas mãos. As
horas são tão quentes e tão frias a cada segundo nesse dia in-ter-mi-ná-vel.
Ontem ele não dormiu bem; não que ele dormisse bem todos os dias; mas naquele
dia ele teve estranhos e repetitivos sonhos com dois velhos e uma espera
interminável por algo ou alguém que ele (por algum motivo) odiava. Com todas as
suas forças, odiava. Acordava: água com açúcar, depois hipnóticos
não-benzodiazepínicos, ainda antidepressivos sedativos. Mas nada parecia
acalmar ou modificar a insistente manifestação do seu inconsciente. Foi quando
às 4:30 vestiu um elegante sobretudo comprado em um brechó de Paris, lavou os
olhos, partiu para o bar de sempre.
Estamos
no ponto inicial: Uma mesa de bar, um homem sentado, uma folha velha de caderno
em suas mãos. A folha seria para qualquer insight
que por ventura ele tivesse. Era escritor. Foi quando ele olhou para o lado
e reconheceu uma réplica muito convincente de “Noite Estrelada sobre o rio Rhône” de Van Gogh. Sentiu que o seu
sonho e o quadro misturavam-se de forma assustadora. O casal de velhos, o rio,
a espera odiosa. Sentiu que cada luz que o rio refletia era um pensamento
in-ter-mi-ná-vel. Contudo, em um dado momento sentiu algo que não esperava e
que não estava relacionada com o sonho ou com Van Gogh. Uma mão escorregou
sobre a sua. Ouviu um sussurro: “eles
também me assustam”. Olhou, sua visão saiu de foco por alguns segundos até
concentrar-se na realidade dos lindos olhos cor de mel: “eu tenho ódio da espera deles”.
-
Não é bom alimentar esse sentimento de ódio, homem do sobretudo.
-
Estou tentando me livrar, homem dos olhos cor de mel.
Os
homens sem muita demora descobriram o nome um do outro, entre tantas manchas
azuis da noite estrelada, cerveja, Calcanhotto ao fundo. Conversaram entre
goles, saliva, sonhos, imaginação e tudo aquilo que dois homens bonitos,
interessantes poderiam dialogar. Certamente que encontram mil pontos em comum,
astros, búzios, noites, tempestades, namoro: tudo entrelaçado entre a poesia e
a nostalgia daquele encontro. Calcanhotto: pra
quê querer saber que horas são? Se é noite ou faz calor, se estamos no verão,
se o sol virá ou não... Uma moto vermelha encosta no bar, já são quase
seis. A voz da mulher que desce da moto diz: “Sobe logo, não me deixa só por
tanto tempo”.
O
homem de sobre tudo odiava aquela mulher também, assim como odiava a pessoa da
espera no quadro de Van Gogh. Os olhos cor de mel deixaram escapar uma lágrima e
o barulho do cano de escape da moto misturava-se com os soluços da boca cor de
romã, dos olhos cor de mel.
O
sol desponta e não há mais motivo para usar um sobretudo. O que antes era
coberto por um tecido de cor indecifrável, dava espaço a um corpo belo. Não
esse belo de horas dedicadas à academias e produtos light, mas uma beleza que
traduzia os primeiros suspiros da manhã: leveza, orvalho, lágrimas, bocejo. O
corpo guardava marcas da noite anterior. Quem era aquela mulher? Por que os
olhos cor de mel verteram lágrimas? Onde estava a força do homem de sobretudo
que deixou aquela boca sair aos soluços sem provar o provável gosto doce/ácido
dos seus lábios? Era um enigma que preenchia o seu corpo matutino e que parecia
durar.
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